quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Tarde com Clarice Lispector

Entrei naquela cozinha iluminada pelo Sol da tarde, cheirava a café, e ela me disse que era só um instante, que ela só estava terminando de passá-lo. "Meu café é amargo como ás vezes sou, espero que não se importe".
Clarice não sabia que o amargo dela era a parte mais doce do mundo.
Desculpou-se pela bagunça em cima da mesa, disse que não havia recolhido aquilo desde a manhã, quando trabalhara na 'compilação' de suas idéias, e de alguns fragmentos que havia imaginado na semana anterior.
Sentei-me em sua mesa de madeira, agradeci por ter-me recebido de tão bom grado, expliquei em simples termos minha admiração por ela, se não pela literatura e a habilidade com as palavras (incontestável), então por ela mesma, como pessoa, escrita em essência naqueles textos e em certos momentos tão visível, tão palpável, por trás de tais palavras, que eu chegava a julgar (talvez 'julgar' não seja a melhor palavra, corrijo-me: eu chegava a sentir) conhecê-la na intimidade.
Logo que pronunciei tal declaração, me senti de imediato vexada, afinal de contas, eu não era mais que uma estranha sentada na cadeira de sua cozinha.
Mas pra minha surpresa, Clarice me olhava com afeto, sem abandonar aquela tristeza sempre presente no olhar.
Me perguntou se, como sua amiga íntima, eu gostava dela.
Lhe expliquei então, com algumas omissões necessárias e em termos eufêmicos, que não só gostava dela, como em certos momentos, parecia que ela havia lido minha alma, parecia que ela era eu.
Ela sorriu com o canto dos lábios, com esse sorriso fugaz e velado de Clarice, e disse que quando ela escrevia, ela era toda a humanidade, e que não escrevia para ninguém, e que ás vezes escrevia somente para si mesma, e que por isso mesmo conversava com a alma de qualquer ser vivo.
Perguntei-lhe como era conviver com tamanha intensidade dentro de si. Ela disse que era segredo, mas que no fundo eu sabia a resposta de cor e completamente.
Clarice falava de suas histórias de forma modesta, colocando-se como uma escritora de menor grau, mas em momento nenhum era modesta quanto á sua sensibilidade e intensidade, falava delas com certo orgulho, embora suas maneiras delicadas não deixassem transparecer nenhum tipo de vaidade.
Cheguei então á questão principal. Confessei á ela, já estivesse completamente à vontade, que na verdade eu estava ali sim para saber um pouco mais de sua obra, como grande leitora de seus livros e alguém que pretendia (quem sabe um dia) escrever, mas que, principalmente, gostaria de saber se ela tinha alguma solução para a vida.
Ela pareceu um pouco curiosa frente á tal afirmação e me incentivou a continuar. Expliquei: a vida andava vazia (afirmação banal quando dita, mas arrasadora quando sentida) e eu vivia na ânsia de produzir qualquer coisa que pudesse inspirar, e que eu pudesse deixar no mundo , que pudesse permanecer após a minha morte. Eu queria deixar algo de verdadeiro valor para o Mundo, mas parecia que o que o Mundo esperava era que simplesmente sobrevivêssemos, acumulássemos, reproduzíssemos. Contradição intrínseca! "Clarice, simplesmente não há como viver á parte da realidade. Meu ser nega á todo tempo o real, o orgânico, o cru, o concreto, mas, ao mesmo tempo, é impossível negá-lo, é impossível, aliás, em certos momentos, conceber qualquer coisa além disso."
Ela então me olhou muito profundamente nos olhos, e disse cheia de carinho "Ora, querida, pois é essa a questão de todo ser que sente. Esse embate, essa contradição, como você mesma diz, intrínseca, é a grande angústia do indivíduo, é o que faz com que os adultos sejam sempre tristes e sozinhos. Não há solução. Não temos de buscá-la. Estamos vivos enquanto estivermos vivos, e sentimos porque é inevitável. A parte disso, existe toda a intensidade da vida, a ser sugada, como um bebê, que suga vorazmente o seio machucado da mãe. O mundo está machucado da nossa sede, também, mas há que sugá-lo até a última gota. É algo como a lei da natureza. Muito cru, insuportavelmente cru, e ao mesmo tempo, simplesmente e naturalmente digerível. Se quer um conselho: faça um pedido ás suas entranhas, logo a indigestão tornará-se mero desconforto, até que volte."
Aceitei o conselho de minha amiga autora (se me permitem o abuso), voltamos ao café e tratamos de falar de trivialidades, se bem que, para Clarice, nada era trivial, sob tudo residia um sentido maior, uma poesia e profundidade que ás vezes só ela captava.
Deixei-me estar envolvida pela tristeza e gravidade de minha desconhecida nova amiga e de toda a vida, e a tomar seu café amargo como ela era doce, e me perder no alaranjado daquela tarde, cerca de 40 anos atrás, no dia de hoje.

Um comentário:

  1. Clarice é uma dessas autoras que me nego a compreender - basta gostar. Assim também funciona com Caio Fernando Abreu - já leu?

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