sábado, 27 de outubro de 2012

Aos que eu mais amo

"Histórias memoráveis" são aquelas que não dizem respeito somente a nossa história pessoal, mas que falam sobre toda a humanidade, segundo Don Juan.
Enquanto ele contava uma das suas: um toque do universo em sua vida, uma segunda chance, enquanto ele contava a nós sobre como ele chegou à compreensão de sua própria história, tão cheia de erros e de dores, e nos explicava a gratidão que sentia por ter tido a oportunidade de estar aqui e agora ("se qualquer coisa tivesse sido diferente eu não estaria"), vi seus olhos se encherem e transbordarem lágrimas, esses olhos imensos, hoje circundados por tantas rugas.
Só quem viveu o que eu vivi, essas tardes compartilhadas com três pessoas tão infinitas, entre lágrimas de emoção de nós quatro, consegue entender um amor tão imenso... É a poesia da vida que não tem fim.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Todos os mares do mundo

Ficou assim, com os olhos vidrados, deitada no chão, sem mover um único músculo. Alternavam-se períodos de uma completa ausência de si mesma e outros em que puxava o ar muito forte, como se lhe tivessem ferido de morte, uma faca no coração, uma pontada no estômago, dilacerado um pedaço da alma, ela respirava para lembrar que estava viva, para comprovar que aquele pesadelo terrível era mesmo real, e então as lágrimas voltavam a brotar no canto dos olhos, rolavam pela bochecha e mergulhavam, uma a uma, nos seus cabelos cacheados.
Chorou tanto que inundou o quarto, inundou a casa, de repente boiava no próprio pranto. O choro fez-se mar imenso que invadiu toda a cidade, as ondas de lágrimas, cada vez maiores, centímetros, metros, quilômetros, forçaram os moradores a saírem apressados, levando consigo somente o que tinham de mais precioso. Mães saíram com seus bebês nos braços, os avarentos com todas as suas economias, guardadas com tanto afinco debaixo dos colchões, saudosistas salvaram álbuns de fotografias e cartas, e os solitários levaram seus livros preferidos.
Aquele fenômeno estranho foi noticiado insistentemente pelos meios de comunicação durante toda a semana. Será que o nascimento de um novo mar surgido do absoluto nada e tão de repente era o anúncio do fim dos tempos? A catástrofe prometida enfim tivera início? Será que houvera alguma mudança no ciclo lunar e uma alteração no regime das marés? Ou a água vinha do centro da Terra?
Cientistas afobados com seus óculos fundo de garrafa chegavam a todo tempo com seus barquinhos, sobre as ruínas da cidade, com roupas de mergulho e fitas métricas, cadernos cheios de cálculos, e vidrinhos contendo amostras de toda e qualquer parte de tudo quanto existia.
Seitas religiosas foram fundadas, alguns acharam que se tratava de uma repetição do imenso dilúvio e mandaram construir sua própria arca de Noé, outros poderiam jurar que aquilo era obra de forças extraterrestres.
Mas não chegou-se à conclusão nenhuma e o fato, meses depois, foi esquecido. O novo mar foi incluído nos mapas e não falou-se mais nisso.
A menina despareceu, nunca mais ouviu-se falar dela. Na verdade, a única notícia que tive e que posso contar-lhes (devo deixar a ressalva de que as fontes não são totalmente confiáveis): uma criança que construía castelos de areia na recém surgida praia jura ter visto - no exato momento em que o Sol tocava o horizonte e iniciava sua viagem aos porões da Terra, onde adormece todas as noites - uma mulher azul andando sobre as águas.
Segundo relatos, ela tinha longos cabelos azuis, há quem diga que seus cabelos eram as próprias ondas do mar, que eles se estendiam até o infinito...
Quando o Sol enfim deitou-se em seu leito, disseram-me que ela dissolveu-se no mar de suas lágrimas.
Particularmente, só vejo uma explicação: sentiu tanta saudade que transbordou-se, que fundiu-se ao seu sentimento e fizeram-se, unidos, plenitude, solidão azul.
Não deveria contar-lhes, mas assim nasceram todos os mares do mundo: de uma saudade sem fim.