quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Encruzilhada

O que me parecia colorido era gris
o que aparentava permanência era giz
e tudo o que ostentava tenacidade por um triz
desmorona com o vento
como árvore sem raiz
nunca mais se ouvirá
a súplica infeliz
explico com clareza, está em tudo o que fiz:
indiferença travestida de amor
eu nunca quis.




terça-feira, 27 de novembro de 2012

Parto

Talvez a vida seja feita de pequenas solidões no banco da praça
de pequenas realizações de olhos que sorriem
de pequenas lágrimas de grandes saudades
de uma poesia muito parca, muito simples
que se pretendia Drummond
e acabou sendo a plantinha que nasce entre as rachaduras do concreto
sem importância, sem beleza, sem visibilidade
esquecida
mas esquecidos todos estamos
somos todos homens mortos
desde o instante em que nos tiraram ensebados daquela mulher
que nos deve boa parte de suas rugas
e tudo o que soubemos fazer foi chorar
quem é que nos trouxe pro frio, pra essa luz que cega?
era tão bom, tão quentinho, um coração pulsando num ritmo acalentador
talvez a vida seja feita simplesmente de uma busca pelo útero materno
talvez a vida seja feita de imensas desilusões
e na melhor das hipóteses, desconstrução de muitas certezas
talvez a vida seja ter um grande objetivo
e ao chegar a ele, descobrir que o que era bom era buscá-lo
e que choramos e nos martirizamos porque não éramos bons o bastante
mas na verdade, assim éramos melhores
talvez a vida seja sempre esse buscar a felicidade no futuro
e descobri-la, tarde demais, no passado
mas jamais ser feliz.

sábado, 17 de novembro de 2012

Vendo minha vida por dois trocados de sinceridade


Existe vida além dessas quatro paredes-cela
que encho de livros, desenhos, fotos
para forjar a liberdade
e faço todas as minhas viagens dentro de mim mesma
dos meus sonhos que voam muito além de todas as grades.
Existe uma extensão imensa de mim além do que se pode ver
maior ainda do que julgam que sou
como a ponta minúscula de um iceberg
minha parte submersa não tem fim.
Existe tanto nunca mais para pouco para sempre
e tanto amor além dessa hipocrisia
desse eufemismo
desse desamor subentendido
como se fosse possível amar por obrigação
grande piada!
Existem tantas lágrimas por detrás desses olhos
elas entregam sua pureza ao mundo
que não as merece.
Existe tanta crueldade também por detrás desses olhos
tudo o que é lindo pode ser podre
tudo o que é amor incondicional pode ser egoísmo
E o é, invariavelmente.
Tudo é duplo: os contrários que fazem-se um
nada ou ninguém é bom sem que seja também mau
mas nos contentamos em viver na mentira.
Existe algo que quer tanto voar
Além dessas expectativas que tanto machucam
além dessa crítica dura que não pretende nada além de podar, amputar.
Existe a vida e seu punhal de duas pontas
Por um caminho ou outro me lanço a ele
e me corto inteira
Talvez quando meu coração estiver completamente aos pedaços
talvez quando minhas entranhas estiverem colorindo de sangue tudo o que está fora de mim
Talvez quando já tiver explodido minha própria cabeça
e minha mente estiver voando como cacos de vidro em todas as direções
talvez exista então algum tipo de não-ter-fim.
ou um descansar-em-paz
me satisfaço.
Existe todo um livro-receita de escolhas muito mais saudáveis do que as que faço.
mas afinal, qual de nós não está um pouco doente?
eu por exemplo, estou cheia de escaras
meu corpo está dormente
eu já não ando, eu já não movo os braços, eu já não falo
Existem apenas dois olhos
que vêem e que silenciam.
que sorriem e que choram.
Sobre a pergunta que fiz em outro momento...
Eu sou o escafandro.











sexta-feira, 9 de novembro de 2012

E fim. Ponto.

Essa foto foi tirada pela talentosíssima Gi Godoi
Ponto.
Câmbio.
Início.
Acho que sonhei com uma borboleta. Não tenho certeza e nem me lembro com clareza.
Tudo que me vem à mente é um bater de asas.
Um segundo, um espectro de cores que se misturam, se fundem, se penetram, são alguma outra coisa, uma cor transcendental, um som, um gosto, um cheiro, 
movimento colorido, que parte e se parte.
A borboleta sou eu?
Não.
A borboleta não é ato, é potência.
Destino.
A que será que se destina?
Num dia de sol, daqui dois dias ou cinquenta anos, enfim a inércia inquebrantável 
será quebrada.
Relatividade.
Numa noite estrelada, sob o universo e sua sinfonia incompreensível, o que é casulo 
será borboleta.
Um dia...
Um bater de asas de uma borboleta...
Será um tufão no Japão!
(onde o Sol se esconde...)
Sóis.
Sois.
Dós e rés.
Um ponto final nos espera, indubitavelmente.





sábado, 27 de outubro de 2012

Aos que eu mais amo

"Histórias memoráveis" são aquelas que não dizem respeito somente a nossa história pessoal, mas que falam sobre toda a humanidade, segundo Don Juan.
Enquanto ele contava uma das suas: um toque do universo em sua vida, uma segunda chance, enquanto ele contava a nós sobre como ele chegou à compreensão de sua própria história, tão cheia de erros e de dores, e nos explicava a gratidão que sentia por ter tido a oportunidade de estar aqui e agora ("se qualquer coisa tivesse sido diferente eu não estaria"), vi seus olhos se encherem e transbordarem lágrimas, esses olhos imensos, hoje circundados por tantas rugas.
Só quem viveu o que eu vivi, essas tardes compartilhadas com três pessoas tão infinitas, entre lágrimas de emoção de nós quatro, consegue entender um amor tão imenso... É a poesia da vida que não tem fim.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Todos os mares do mundo

Ficou assim, com os olhos vidrados, deitada no chão, sem mover um único músculo. Alternavam-se períodos de uma completa ausência de si mesma e outros em que puxava o ar muito forte, como se lhe tivessem ferido de morte, uma faca no coração, uma pontada no estômago, dilacerado um pedaço da alma, ela respirava para lembrar que estava viva, para comprovar que aquele pesadelo terrível era mesmo real, e então as lágrimas voltavam a brotar no canto dos olhos, rolavam pela bochecha e mergulhavam, uma a uma, nos seus cabelos cacheados.
Chorou tanto que inundou o quarto, inundou a casa, de repente boiava no próprio pranto. O choro fez-se mar imenso que invadiu toda a cidade, as ondas de lágrimas, cada vez maiores, centímetros, metros, quilômetros, forçaram os moradores a saírem apressados, levando consigo somente o que tinham de mais precioso. Mães saíram com seus bebês nos braços, os avarentos com todas as suas economias, guardadas com tanto afinco debaixo dos colchões, saudosistas salvaram álbuns de fotografias e cartas, e os solitários levaram seus livros preferidos.
Aquele fenômeno estranho foi noticiado insistentemente pelos meios de comunicação durante toda a semana. Será que o nascimento de um novo mar surgido do absoluto nada e tão de repente era o anúncio do fim dos tempos? A catástrofe prometida enfim tivera início? Será que houvera alguma mudança no ciclo lunar e uma alteração no regime das marés? Ou a água vinha do centro da Terra?
Cientistas afobados com seus óculos fundo de garrafa chegavam a todo tempo com seus barquinhos, sobre as ruínas da cidade, com roupas de mergulho e fitas métricas, cadernos cheios de cálculos, e vidrinhos contendo amostras de toda e qualquer parte de tudo quanto existia.
Seitas religiosas foram fundadas, alguns acharam que se tratava de uma repetição do imenso dilúvio e mandaram construir sua própria arca de Noé, outros poderiam jurar que aquilo era obra de forças extraterrestres.
Mas não chegou-se à conclusão nenhuma e o fato, meses depois, foi esquecido. O novo mar foi incluído nos mapas e não falou-se mais nisso.
A menina despareceu, nunca mais ouviu-se falar dela. Na verdade, a única notícia que tive e que posso contar-lhes (devo deixar a ressalva de que as fontes não são totalmente confiáveis): uma criança que construía castelos de areia na recém surgida praia jura ter visto - no exato momento em que o Sol tocava o horizonte e iniciava sua viagem aos porões da Terra, onde adormece todas as noites - uma mulher azul andando sobre as águas.
Segundo relatos, ela tinha longos cabelos azuis, há quem diga que seus cabelos eram as próprias ondas do mar, que eles se estendiam até o infinito...
Quando o Sol enfim deitou-se em seu leito, disseram-me que ela dissolveu-se no mar de suas lágrimas.
Particularmente, só vejo uma explicação: sentiu tanta saudade que transbordou-se, que fundiu-se ao seu sentimento e fizeram-se, unidos, plenitude, solidão azul.
Não deveria contar-lhes, mas assim nasceram todos os mares do mundo: de uma saudade sem fim.




terça-feira, 25 de setembro de 2012

Meu menino


Olha por nós, ó Pai.
Ora, Deus, ora por nós, antes de adormecer em seu berço.
Se não existires fora...
Existas dentro de mim, querido Deus.
Se não te deram a luz, Deus menino
É hora de nascer.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Se um dia eu me encontrar...

Se um dia nos cruzarmos na rua, finja que não me conhece.
Poderíamos fazer como todas as outras pessoas: nos encontraríamos um dia no supermercado e falaríamos da família, você contaria das viagens artísticas que anda fazendo e eu te falaria de como meus filhos são brilhantes e arteiros, comentaríamos da velha turma, eu diria que encontrei um deles na fila do pão e você cruzou com um outro na entrada do cinema, e então diríamos que temos mesmo que nos ver, talvez até trocássemos telefones, prometeríamos nos encontrar, o que no fundo, jamais aconteceria. Você colocaria sua calça para lavar com o meu telefone no bolso, e o seu ficaria pra sempre no porta-luvas do carro.
Não, eu não suportaria. Não suportaria dissimular tão hipocritamente o fato de que descumprimos inegavelmente a nossa promessa de um futuro juntos, não saberia falar do preço da gasolina enquanto há tanta saudade no peito, e se não houver saudade, a consciência de que alguma coisa deu errado, um monumento de pedra na memória.
Não. Se um dia esbarrar comigo, não diga nada. Não quero saber da sua vida, não quero contar-lhe da minha. Me olhe por um instante e saiba, saiba de todos os momentos, de todas as lágrimas, saiba da dor da separação, saiba de como nos humilhamos, de como nos odiamos, de como nos amamos até o segundo em que tudo morreu, lembre-se de mim então pelo que eu era, ainda que você nem mesmo possa me reconhecer. Guarde no seu coração esse pequeno luto, esse pedaço secreto de existência jamais imaculado, ainda que enterrado. Guarde-o como algo divino, sagrado. Não, não diga nada. Siga andando, não comente com ninguém que me viu, e dali uns dias, esqueça.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Houve, Há, Haverá

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade
Dentro dessa incapacidade de aceitá-la tal como é

Já não sei bem o que penso da vida, já não sei bem qual é o meu objetivo. Por suposto, não é a felicidade plena, como um fim. Já entendi que não se chega a ela jamais.
Ouvi dizer que o objetivo da vida é a própria vida, que não se chega  a lugar algum, que o "fim" que buscamos é o próprio caminho. Mas no fim do caminho, o que haverá? Quando se chega em fim à beira do precipício, e tudo que se pode fazer é cair, o que haverá além de nossos pés? Ganharemos asas?
Busco acreditar, mas temo jamais saber com certeza.
Sei de minha limitações, físicas e espirituais, hoje mais que nunca. Sinto, pulsante em mim, minha pequenez, sei cada vez mais que sei cada vez menos, e que tenho os meus medos no meu encalço, sempre à espreita.
E por fim a morte. Será possível, Poetinha, recebê-la como uma velha amante, como a mais nova namorada? Você conseguiu, enfim?
Espero comunicação de além túmulo.

De sua leitora cheia de admiração e saudade de quem jamais conheceu...
etc, etc, etc.

http://www.youtube.com/watch?v=s1_byQDZRM0
Poeta, Poetinha vagabundo
Quem dera todo mundo fosse assim feito você
Que a vida não gosta de esperar
A vida é pra valer, a vida é pra levar
Vinicius, velho, saravá!


sábado, 7 de julho de 2012

À minissaia

Ele disse que ligaria... E ela esperou.
Lá pelas tantas, cansada de andar de um lado para o outro, resolveu convidar o senhor Johnnie Walker para a festinha solitária.
José Cuervo já estava no fim...
"Johnnie, meu caro, tú y yo!"
Horas depois, nem o whiskey conseguiu enganar a ausência. "Mas que diabos, por que é que ele não liga?"
O pé impaciente a batucar o chão do apartamento já se tornara um samba desagradável aos ouvidos dos vizinhos de baixo.
Começou com a fossa. Trocando em miúdos pode guardar as sobras de tudo que chamam lar, a sombra de tudo que fomos nós, as marcas de amor nos nossos lençóis.
E passou para a ira. Quando chegar o momento esse meu sofrimento vou cobrar com juros, juro.
No fim do cd, é se recompor ou se recompor. Olhos nos olhos quero ver o que você faz, ao sentir que sem você eu passo bem demais.
"Pois, ora, o senhor há de ver quem é que ri por último."
Tirou o salto do armário, o batom vermelho já estava a postos e -ah!- a minissaia. Pronta, devidamente munida de suas armas mais letais: rua!
Galgar o mundo com pernas vacilantes e nuas, assim vingamos todos os ex-namorados, ex-maridos, ex-amantes, ex-amores.
Minissaia nossa de cada dia, a ti agradecemos o poder que nos confere. Amiga leal, companheira fiel que jamais nos abandona, ainda que a abandonemos, certas vezes, temporariamente, em algum quarto, algum banheiro, algum tapete...






domingo, 27 de maio de 2012

Saudade

Teu olho que brilha e não para
Tuas mãos de fazer tudo e até
A vida que chamo de minha
Neguinha, te encontro na fé


Ás vezes no meio da aula, ou enquanto ando pela rua, me vem a lembrança de um dia tão lindo que passei ao seu lado, um apenas, entre a infinidade de dias tão lindos e tão intensos que tenho para lembrar, que ás vezes me fazem sorrir, e ás vezes me fazem chorar.
E eu te lembro sempre tão linda, sempre me fazendo sorrir, me dando força, em meio a esse seu amor infinito, em meio à essa sua capacidade de se doar inteira.
Estendo o meu amor, então, até o infinito, para que você possa sentir.
E aos poucos vou aprendendo a sentir a sua presença, dentro dessa ausência perpétua.
Aos poucos vou aprendendo a conversar com você, sem ouvir a sua voz.
Aos poucos vou aprendendo a ver o seu olhar, em todas as coisas bonitas que me lembram você, sem poder olhar pra esses seus olhos amendoados que me fazem tanta falta.
Hoje eu sei o significado de saudade, hoje seu nome é saudade, e saudade é o seu nome.

domingo, 20 de maio de 2012

Blanco

estrangeiro na minha alma
impossibilidade concretizada
insistentemente nos meus sonhos
significado surpreendentemente descoberto
no fundo negro da minha vida entendo-te
claro, alvo, translúcido 
resplandecentemente 
você

http://www.youtube.com/watch?v=jOTckSYX8Pg




segunda-feira, 7 de maio de 2012

Manifesto do antiquário vanguardista: pela não-violação dos meus segredos

Respeito aos símbolos e aos significados.
Respeito ao silêncio guardado entre dois olhares.
Respeito à poesia - nossa - de cada dia.
Respeito à expressão livremente livre.
Respeito aos nossos erros.
Respeito às nossas lágrimas.
Respeito ao sincero exagero.
Respeito à sangria da verdade.
Respeito à não-necessidade de ser.
Respeito à falta de sentido.
Respeito ao sentimento e ao sentimentalismo.
Respeito às lembranças.

Pelo fim da inoportuna e recém descoberta insensibilidade.
Para matar a mágoa.



sábado, 28 de abril de 2012

Ana

Minha preta tão amada,
Hoje entendo muito melhor tudo o que você me disse. Hoje morrer não é meu maior medo, hoje o meu maior medo é o de viver, do que ainda pode me acontecer, de quanta gente eu ainda posso perder.
Eu sei, preta, que você estava cansada, mas eu sei também o quanto você quis viver e ser como todo mundo, e eu não aceito, pretinha, eu não aceito que tudo tenha chegado ao fim dessa forma.
Eu escuto a sua voz o tempo todo no meu ouvido, dizendo "não chora, sof", com esse jeitinho meigo com que você costumava falar essas coisas. Me perdoa, pretinha, hoje não consigo. Me perdoa pelas minhas fraquezas todas.
Mas espero, espero a minha hora chegar, eu sei que você vem ter comigo, me olhar com os seus olhos amendoados, e quem sabe num outro lugar, algum dia, a gente possa de novo comer a melhor pipoca doce do mundo e dar gargalhada dum filme de terror horrível.
Segue teu caminho, preta, seja ele qual for, que Deus te ilumine.
Fica aqui, neste mundo feio, o meu amor infinito.

domingo, 22 de abril de 2012

Terra

"Terra! um dia comerás meus olhos…

Eles eram
No entanto
O verde único de tuas folhas
O mais puro cristal de tuas fontes…

Meus olhos eram os teus pintores!

Mas, afinal, quem precisa de olhos para sonhar?
A gente sonha é de olhos fechados.

Onde quer que esteja… onde for que seja…
Na mais densa treva eu sonharei contigo,
Minha terra em flor!"


                               
                                          Mário Quintana

terça-feira, 20 de março de 2012

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Must the show go on?

There must be some mistake,
I didn't mean to let them take away my soul
Am I too old?
Is it too late?
Where has the feeling gone?
Will I remember the songs?

The show must go on.

Um dia se chega ao esqueleto da vida. Suponho que ainda não tenha chegado, mas me encontre prematuramente muito perto. Como uma fruta, a vida perde a casca, depois os gomos, deixando somente uma áspera, espinhenta, feia semente.
Essa semente é a verdade, a verdade intrínseca de todas as coisas. Na realidade, entenda-me, não existe meio termo, todas as coisas são ou não são. Não existe meio amor, meio carinho, meia maldade, meia indiferença.
Palavras valem pouco, aprendi. Inclusive estas que professo agora. São vãs, não garantem, não mostram: mentem.
No cerne da vida, me vejo despida de tudo quanto achei essencial: tempo, carinho, tudo o que é alheio não posso considerar meu. E só me sobra exatamente o dom que Deus colocou no meu ser no momento da fecundação que me deu a vida: a própria vida.
Me mantenho viva, mesmo quando desejo um sono profundo e demorado, mantenho meu coração pulsando, porque na vida em essência, é isso que importa.
Tudo mais é ilusão.
Na essência do homem vi o amor, ou a crueldade, nos seus maiores requintes: depende do ponto de vista.
E se fiz as escolhas que fiz, foi pra aprender a amar direito: cuidado, amor se traduz nessa única palavra. Não há como amar um ser vivo, qualquer que seja, sem dispender o mínimo de cuidado. Se não for assim, não há amor.
Procuro um amor que não seja feito de palavras. Entenda: amor pelo ser humano, na sua raiz mais profunda, mais básica.
E sobre tudo isso existe o tempo, o tempo que envelhece, que arranca, que revela por fim sua cara.
Como me disse ontem Isabel Allende, "Meu passado tem pouco sentido, não vejo ordem, clareza, propósito nem caminhos, somente uma viagem ás cegas, guiada pelo instinto e por acontecimentos incontroláveis que desviam o curso do meu destino. Não houve cálculo, apenas boas intenções e a vaga suspeita de que existe um traçado superior que determina meus passos."
Na linha do tempo, me reporto ao dia de meu nascimento, do qual não me recordo, mas ouvi contar. Nessa cena que imagino, vejo a força de minha mãe para que eu pudesse nascer, e os braços do meu pai que me apararam na primeira vez que abri os olhos para o mundo.
Só agora entendo que as pessoas que lutarão por mim são aquelas que lutaram desde o momento que dei minha primeira bufada de ar neste mundo, e antes mesmo, em conversas intermináveis, dentro do ventre da minha mãe, quando decidiram me chamar de Sofia.