quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Espectro

Olhou-se no espelho, bem no fundo dos olhos.
Ela não era nada do que queria ser.
Nem ostentava o ideal de revolta, nem a magreza natural que admirava, aquela que dá um ar de dor velada (mas somente se for verdadeiro descaso com a vida). Não tinha o olhar marcante, não tinha olheiras, a pele era um pouco oleosa, o cabelo era o mesmo de sempre, sem vida.
Ela passava no meio das pessoas sem ser notada, e se olhassem mais de perto, era responsável, sensata, silenciosa, controlada, muito mais que isso: contida.
Por que então aquela imagem no espelho lhe dava tanto asco?
Por que é que ela queria viver tão mais que o exemplar?
Sua aparência não transparecia absolutamente nada do que acontecia dentro dela, as guerras de fogo incessantes. Seu olhar cheio de consentimento não mostrava a indignação constante que carregava.
Quis quebrar o espelho, quis fugir de casa, quis cortar o cabelo rente à nuca, quis cortar as próprias roupas, quis parar de comprar qualquer coisa que não fosse vital, quis berrar no meio da rua tudo o que pensava sobre o mundo, quis fundar uma religião, quis sair correndo na chuva, assim sem avisar, mas não fez.
Olhou-se no espelho e não quis abandonar a segurança do silêncio, das mentiras que contava para si mesma de forma absolutamente condicionada, não pôde abandonar as ilusões-peneira, não sabia como lidar com o sol fosco da solidão.
Abaixou os olhos, e querendo arrancar fora a própria pele, deitou em sua cama e desejou ter sonhos bonitos, onde talvez fosse pássaro.





Nenhum comentário:

Postar um comentário