sexta-feira, 4 de março de 2011

Letreiros neon

Lembro-me bem dela entrando afobada porta à dentro, falando-me das mil luzes da cidade, que deslumbravam-na como tudo que é novo para dois olhos curiosos - aquele ar de menina deslumbrada talvez fosse o que mais me encantava.
Ou talvez fosse a sombra escondida por trás desse disfarce, sombra essa que só aparecia em raros momentos, dependendo muito da inclinação dos raios de sol, quando, em um instante fugaz, eu enxergava perfeitamente a mulher selvagem que se escondia por trás daquelas pupilas.
Ávida de tudo, ela comia as novidades, e eu, temeroso de uma criaturinha tão pequena a andar - quase dançar- distraída pelas calçadas da metrópole, alertava que isso aqui é uma selva de pedra, e que se num momento as vitrines pareciam refletir somente a beleza daquela vida que, seduzindo, se vendia, no outro tornavam-se em buraco negro, vazio de tudo, um vão existencial que suga quem se distrai.
A essas palavras ela reagia de forma peculiar: com olhos de criança assustada suspirava de aflição. Mas logo a imagem se distorcia em sua mente, e então, como ilustrações de um livro infantil, eu via minha advertência transformar-se em figura literal, e depois em piada.
E ela ria, eu tomava suas mãos entre as minhas enquanto, entre sorrisos, chamava-me de bobo, e quanto mais lhe implorava que não fosse, que não saísse assim, que olhasse pra mim, me levasse a sério, mais ela ria, e ria, e ria, e ria, até que uma lágrima lhe rolasse pela bochecha rosada.
Naqueles olhos mareados de ingenuidade, eu via, ao contrário, a cobiça de quem a via passar por trás das vitrines, brincando, testando os próprios limites, que ela ainda não conhecia bem, desfilando entre as luzes do seu mundo imaginário, muito pouco atenta aos perigos da realidade.
Em meio aos anúncios neon, o tempo dela se desmembrava, e, sem perceber, expunha-se como obra de arte, ou, mais exatamente, como produto absolutamente sedutor, caro demais para quaisquer olhos que não quisessem acabar perdidos.
E eu, muito mais perdido naqueles olhos de vitrine do que gostaria de admitir, a observava de longe, sem jamais ousar me aproximar, vigiava insone seus sonhos de menina-mulher.

Passas sem ver teu vigia, catando a poesia que entornas no chão.


8 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Olhos de vitrine. Embassados pela alegria ofuscante de menina/mulher. Sorriso exposto no canto esquerdo dos olhos. Um convide à vida. Disfarce nas mãos, luzes de neon.

    E sabe que nessa estória o final brilhou tanto em meus olhos.

    Ah que coisa mais linda tudo por aqui. beijooo

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  3. Oi Sofia,

    os anúncios neon, claro. Sua prosa enebria.

    "A juventude está morta, mas ainda somos jovens." Caio Campos

    Abraços,

    Gustavo

    ps: adorei o cabeçalho do blog.

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  4. Sofia, te detesto!
    Escrevi uma crônica com As Vitrines, de Chico buarque!
    Ai garota, como eu te odeio!
    Mas que mundinho pequeno! Que imaginário coletivo filho-da-mãe!
    Aff!

    kkkkk! Brincadeira. Seu texto está lindíssimo. Um beijo grande!

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  5. Quem me dera ter 1% da poesia de você, menina.

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  6. Lindo texto. Li um conto que fala diretamente com o teu no Sobre Fatalismos da Nina Vieira.

    Obrigada pela sua generosidade com o meu texto.

    Grande beijo, Ana

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  7. acho que esse foi o melhor que já li por aqui. sério.

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  8. Ler seu texto e ir encontrando a poesia de Chico Baurque de As Vitrines é bom demais. A propósito gosto muito dessa música.

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