sábado, 2 de abril de 2011

Tênis vermelho, morangos e lágrimas açucaradas

Estava deitada na cama, olhando o teto, e já tinha decorado o número exato de rachaduras e manchas causadas pela infiltração. Refletia agora sobre a velharia que era aquela casa, que outrora já fora cheia de vida, e hoje não passada de uma senhora mofada, assim como ela mesma, largada naquela cama, refletindo sobre as infiltrações do teto.
Foi mais ou menos aí que teve a idéia de levar seus tênis vermelhos novos para passear. Colocou os óculos de armação amarela, enfiou as mãos nos bolsos e saiu (não sem antes esquecer a janela e a porta abertas: já fazia parte da rotina).
Durante o percurso recebeu o "bom dia" do florista, da moça do sacolão, do velhinho sem uma perna e da mulher da quitandaria, que fazia uma rosca digna de qualquer avó. Retribuiu com um imenso sorriso, o que, segundos depois, a fez pensar que o tédio estava estragando sua alma. Desde quando era assim amável?
Tateou os bolsos em busca das chaves, que não estavam lá, obviamente.
Bateu com força na própria testa, soltou alguns palavrões e no resto do percurso sem destino ficou imaginando as cenas mais mirabolantes envolvendo um ladrão que entrava em sua casa, nas quais o final poderia ser: ela terminava morta e vinha assombrar o dito cujo, ou ele terminava morto, ela ia presa e fugia da penitenciária através de um túnel cavado com uma colher furtada do refeitório, que ia dar no Japão.
Riu deste último pensamento e anotou na mão com a caneta que ficava sempre no bolso interno do casaco: "escrever as bobagens que imagino".
Não andou nem mais dez passos e avistou o caminhão de morangos. Estava barato. - Minha nossa! - era época de morangos, ela havia esquecido. Como pôde?
Culpou seu espírito de velha, que já estava afetando seus miolos. Não duvidava nada que um dia ele fosse causar sua morte precoce, aos 27 anos, assim como Kurt Cobain e Janis Joplin (e sinceramente, não se importava, não via utilidade nenhuma em viver demais).
No caminho de volta recebeu os sorrisos do florista, da moça do sacolão, do velhinho sem perna e da mulher da quitandaria, mas não retribuiu nenhum. Logo iam pensar que ela era simpática.
Na porta de casa, lembrou-se de pegar um pedaço de madeira no quintal. Ergueu-o próximo ao rosto, abriu cuidadosamente a porta e entrou pé ante pé, até se certificar de que não havia mesmo ninguém. Assim que teve certeza, jogou o bastão improvisado novamente no gramado e se dirigiu à cozinha, onde abriu e lavou os morangos.
Sentou-se na sala ao lado de um pote de açúcar. Enfiou o primeiro morango inteiro lá dentro, até retirá-lo completamente coberto, a ponto de deixar suas bochechas doces ao mordê-lo.
Enquanto mastigava fechou os olhos, saboreando sua sobremesa preferida. Uma lágrima rolou pelo seu rosto açucarado, caindo doce do sofá.
"Boba", pensou. Tinha acreditado que o morango na boca faria com que fosse mais fácil esquecer sua companheira mais fiel: a solidão.
Enxugou as lágrimas, jogou os tênis num canto, sacou a caneta do casaco e anotou no pulso: "nunca mais comer morangos".


6 comentários:

  1. Muito bem escrito seu texto. Gostei de como você usou as cores e os sabores para transmitir sentimentos. Me vi muito nessa personagem.

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  2. Ai dona Sofia... tão lindo seu texto... tão transparente...
    Estive pensando que tudo isso é tão complicado... Sinto que sou o oposto de tudo que você descreveu: alguém vivendo no presente, no máximo pensando no passado e mesmo que triste podendo fazer as coisas sem ter rumo... Eu costumava ser assim e agora me tornei essa adulta chata, presa a compromissos sem sentido...
    Algum dia eu volto a ser alguém mais ativo, enquanto não me perco de mim... espero!
    Um beijo grande!

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  3. o negócio é fazer a solidão ficar do seu lado. ser uma virtude.
    porque esquecer dela você só esquece com muita, muita, muita cachaça.

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  4. Tem pessoas que de certa forma, gostam da solidão. Não fazem por onde para livrar-se dela (como não retribuir sorrisos) e a aproveita. Mas isso não é bom ou agradável e dificilmente conseguiremos nos livrar de algo tão comum de forma fácil e rápida.
    Belo texto!
    bjs :*

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  5. Ainda bem que todo mundo tem pensamentos catastróficos envolvendo ladrões e fim extraordinários. Só acho que deixar de comer morango é oferecer não só uma cadeira, mas também um chá pra solidão.

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  6. Fantastico *_*.
    Gostei da personalidade dela, gostei da ideia da colher.
    (e shiuuu..diga a ela que se ele tivesse um amigo um tunel viraria o mundo inteiro).
    gostei do conto
    MUITo

    t+
    moça

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